O verão solta os cabelos como a mulher
que se ergueu do leito e avança para o espelho,
com as mãos da manhã a viajarem pela sua pele.
O que ela vê é o reflexo dos sonhos que as suas
pálpebras fecharam para que o dia se não apoderasse
de imagens que ela própria já esqueceu; e
quando despe a túnica da noite; olha
para os seios como se neles corresse o leite
que alimenta o desejo e entrelaça nos seus
cumes os gestos trânsfugas do amor.
O verão que subiu às açoteias do litoral
como o grito dos amantes que incendiou
a tarde e atravessou a terra com um calafrio
de nortada, transformou-se no carreiro
de formigas que se perderam da sua cova.
Sigo-as num caos de vagabundagem, como se elas me levassem
ao encontro de uma recordação de madrugadas
de ócio, ouvindo a voz que ficou da insónia
emergir de uma dobra de lençóis, com
as sílabas exaustas de um imenso abraço.
E saúdo o verão que as trepadeiras possuíram nos quintais anónimos de ruínas imprecisas, esse que fez cair sobre nós o relâmpago de seda,
um sumo de palavras húmidas e a última ressonância
de uma sombra de corpos.
in "A Convergência dos Ventos", Nuno Júdice, Publicações Dom Quixote, 1ª. Edição, Lisboa, outubro 2015
Marta Romão, diretora-geral BDC - Empower to Lead